quinta-feira, 5 de maio de 2011

Crônica de um mártir desavisado


Soube-se muito depois que José Agrípio não era, de fato, um ladrão. Naqueles tempos de Constituição outorgada, era comum que algum crime fosse imputado aos desafetos políticos de Estância Grande do Sul. Assim como volta e meia um telefonema de Porto Alegre fazia com que surgisse por lá uma moça que soubesse datilografar e que, invariavelmente, acabava alocada no gabinete de alguém ligado ao Senhor Prefeito, quem tratava pessoalmente de cuidar para que a pobre não se desgastasse com o trabalho e tivesse tempo para receber visitas de algum general que porventura estivesse passando por esse município tão longe de tudo. Todos sabiam dos acordos do Poder e das estratégias que se usavam para medir o quanto se poderia, ou não, ter serventia para a pátria e os que por ela zelavam. Mas com José Agrípio foi diferente. Quando o acusaram de se ter apropriado do busto de bronze que ornava o átrio da Prefeitura, não houve quem alçasse voz para defendê-lo. Com efeito, dir-se-ia até que já se suspeitava que isso fosse ocorrer. Aquele homem pacífico, avançado na idade, solteiro e sem vícios, que com tal precisa caligrafia lavrava as atas das sessões bipartidárias da Câmara de Vereadores só poderia ter algo de cruel no recôndito de sua alma. Sim, pois seus gestos contidos e a expressão sisuda não poderiam ser mais do que subterfúgios para uma moral deslavada, que com dedo em riste fazia apontar os defeitos nos outros para distrair os olhares de suas próprias ações vis. Ao espalhar-se a notícia do furto, Dona Zenaide, que mantinha limpo o chão do Poder Legislativo, resmungou: “Zé Agrípio se achava tão dono da Prefeitura que até levou o fundador pra casa”. O fundador, no caso, era Gervásio de Oliveira, líder emancipacionista que inspirou o busto desaparecido. Em tempos de discutível autonomia municipal e mais discutível ainda separação de Poderes, Seu José Agrípio era tido por muitos como “dono” da Prefeitura. Não apenas porque tinha as chaves do prédio (do qual a Câmara de Vereadores ocupava apenas uma sala ao fundo do corredor), mas porque era o único capaz de localizar sem pestanejar os documentos de que se precisasse. Por isso, quando, naquela manhã, abriu-se a porta do edifício e constatou-se um pilar vazio, não se suspeitou de ninguém mais se não do “Zé das Atas”. Quem mais teria sido capaz de entrar no edifício de madrugada? Quem, se não ele, seria tão ousado? Haveria, no município, outra pessoa capaz de tanta desfaçatez? José Agrípio soube que não haveria recurso contra a sentença que se escrevia. Fez as malas e partiu, à noite, para algum outro destino em que sua habilidade à Olivetti e seus preciosismos de redação pudessem lhe valer o sustento pelo fim da pouca vida que restava. Corria à boca pequena que o busto de bronze tinha sido levado com ele.

Somente depois de passados quarenta anos do incidente, por ocasião da reforma do antigo prédio da Prefeitura, ocorreu ao engenheiro deslocar as lajes que ornavam o Salão dos Espelhos, recinto de acesso exclusivo aos generais de outrora. Ali se descobriu um alçapão onde havia um busto empoeirado, uma relíquia que bem poderia estar no átrio. Dele já não se lembravam, e por isso chamaram Padre Osvino, ditoso curador da história local, para dizer de quem se tratava. “Valha-me Deus, o Seu Zé Agrípio!” Os antigos lembravam-se da história. Seu Zito, o zelador, que conhecera bem José Agrípio, embargou a voz para dizer que sempre soubera que o causo do roubo era uma armação das grossas. A Glorinha, do RH, propôs uma homenagem póstuma. Um vereador apresentou projeto de lei incluindo as comemorações pelo aniversário de José Agrípio no calendário oficial do município. O Prefeito vetou, por vício formal de iniciativa. Foi o bastante para que o sindicato dos municipários transformasse José Agrípio num mártir. Mandaram buscar nos arquivos da Câmara algum documento em que constasse uma fotografia do antigo funcionário. Alguém achou um retrato comido por traças, com base no qual se mandou fazer um quadro a óleo para reverenciar a pequena sala dos companheiros servidores públicos. Uma faixa dourada, pegada à moldura, indicava: “José Agrípio Ferreira de Vargas, valoroso servidor de Estância Grande do Sul”. “É parente do Homem?”, quis saber o baixinho de bigode. O sindicalista assentiu grave com a cabeça. Esse leal colega só poderia ser parente daquele a quem se chama “o Pai dos Pobres”, gaúcho que amarrou o cavalo ao obelisco porque tinha a missão de empunhar a pena que assinaria os direitos dos trabalhadores brasileiros. O poeta local gostou da notícia e inspirou-se em versos que rimavam julho e Getúlio, José Agrípio e município. Seu nome foi ovacionado nos discursos de 28 de outubro.

Quando José Agrípio virou nome de rua, publicou-se um edital à espera que algum parente comparecesse para as homenagens. Ninguém se habilitou. Diz-se que o servidor teria morrido de desgosto, sozinho e doente, uns dias após a expulsão da cidade. Dissemina-se, porém, a tese de que José Agrípio teria sofrido sucessivas sessões de tortura nos porões da casa do antigo Prefeito, e que seus poucos herdeiros foram jurados de morte no caso de aparecerem para contar a verdade. O fato é que, junto à placa que leva seu nome, já se estuda colocar uma estátua. Quiçá abraçado a Gervásio de Oliveira, de quem se diz que era amigo íntimo, irmãos na luta pró-democracia. E o Partido Obreiro, que aumentou em 7% as intenções de voto para o pleito municipal, já anuncia que a vitória nas urnas implicará na mudança do nome da municipalidade. Em vez de Estância Grande do Sul, resquício dos latifundiários conservadores, responsáveis pelo atraso do mundo e pela fome na África, propõem que conste no mapa “José Agrípio do Povo”, uma justa homenagem a quem empunhou armas para defender a comunidade dos desvarios da política local.                        

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