quinta-feira, 5 de maio de 2011

Nem espadas nem expectativas

Soube que Ivan estava falando sério quando espiei sobre seu ombro e vi aberto o site de uma imobiliária. Sua preferência recaía sobre um apartamento de dois quartos com churrasqueira na sacada – ele sempre quisera churrasqueira! É andar baixo, reclamei. Ele fez que não escutou. Há um par de semanas que Ivan não me escutava. A decisão fora tomada, e só estávamos dividindo o mesmo espaço por causa da burocracia. Ivan propôs que eu ficasse no apartamento, mas os móveis, a TV, o computador que compramos juntos, tudo o mais ele iria levar. Não protestei; não tinha dinheiro para devolver-lhe o investido na reforma. Ele passou aquela semana com a trena no bolso, tentando fazer caber os nossos sonhos na sua casa nova.

Contando, hoje, parece quase nada. Mas aquelas três semanas entre o anúncio da separação e a mudança de Ivan desenvolveram-se lentas e cruéis como o câncer. Meu casamento esvaía-se sem que houvesse nada a fazer. Um dia, cheguei do trabalho e vi, empilhados no canto da sala, os livros que ele decidira levar. O Carpinejar é meu! Eu gosto dele mais do que tu. Mentira! Tomei o volume da pilha e abri na página autografada. “Para Carina e Ivan, que o amor não se esqueça de começar”. Queres? Fica com ele. Vou passar error-ex no teu nome. Pára com isso! Ivan pôs-se a dividir os CDs, e o fez melhor do que eu seria capaz. Os que me faziam lembrar dele, que levasse. Das fotos, porém, pegou só algumas; em quase todas aparecia sozinho. Quando eu pensei que ele já tinha partilhado tudo, chamou-me para perguntar com que roupas eu queria ficar. Os lençóis? As toalhas? Sim, mas especialmente o moletom vermelho grande que eu gostava de vestir no inverno, e aquela camiseta da turma da faculdade, que ele me ofereceu para dormir na primeira noite que passamos juntos. Eu não quis nada; ele tampouco. E foi assim que as fronhas ainda impregnadas dos nossos cheiros compuseram uma grande sacola entregue à faxineira na manhã seguinte. Pensar que os ocasos amorosos tinham lá sua função social não acalmava a angústia que comprimia o peito e não tinha remédio para curar.

No fim de semana da despedida, eu não quis ficar. Fui visitar uma amiga no interior para ser consolada enquanto Ivan encaixotava a vida que teria sem mim.  Na última sexta-feira sob o mesmo teto, ele ficou se distraindo com o que havia de mais pragmático na separação: o contrato de aluguel, a assinatura dos dois fiadores, a vistoria, a rachadura da parede, a linha telefônica, a troca de endereço para correspondência, o cancelamento do débito em conta, um chuveiro novo, igual ao nosso, para que ele não estranhasse demais o banho sozinho. Eu já dormia quando Ivan chegou. Bateu a porta, ligou o som alto, quebrou um copo, fumou dentro de casa, fez tudo o que pôde para brigar. Não conseguiu. Levantei-me, fui vê-lo uma última vez, mas eu chorava quietinha. Nenhum ruído marcava a trilha da lágrima. Nenhum soluço convulsionava aquela dor. Nada de prantos nem urros para escapar ao chão. E, finalmente, ele me olhou. Assim ficamos: olhando-nos e recordando como tínhamos ido parar ali. Estás com medo? Estou. Não precisa, vai dar tudo certo. Abraçamo-nos num abraço de saudade, um abraço que reencontra um velho amigo, um abraço de pêsames, um abraço de adeus. 

Quando retornei, na segunda-feira, o apartamento era enorme. Sentei no chão da sala vazia e vi o bilhete de Ivan; a aliança como peso de papel. Que eu passasse no escritório do Dr. Barcelos, nessa mesma semana, para assinar o acordo; que, antes de mobiliar a cozinha, eu mandasse arrumar o vazamento da pia; que a chave, ele tinha deixado com o Seu Rogério, junto com o telefone do chaveiro, para que eu trocasse a fechadura. Guardei só a aliança. Não fazia sentido aquilo tudo. Estar nesse apartamento em que todas as sombras ainda eram as dele. Estar nessa cidade em que todos os amigos eram amigos dele. Estar nesse trabalho que só tinha valor por causa da opinião dele. “Esta é a crise mais grave pela qual já passaste?”, perguntou o psiquiatra. Lembrei de quando o pai foi embora, da morte do avô, da doença da Joana, do meu acidente, mas não soube responder. Todos os meus momentos eram graves, e cada um deles foi roendo um pedacinho da manta que me acalentava o futuro. Ali, então, era o fundo do poço. Ali, não existia mais nenhum edifício de pé. Ali, já não restavam nem cores nem luzes. 

Com a ponta dos dedos, juntei os farelos que eu ainda queria. Levantei. Sem espadas, sem expectativas.

2 comentários:

  1. Este texto deve ser de abril de 2009. Por aí... Não lembro bem. Lembro, sim, da professora Lea Masina, discutindo-o comigo. Não vou dizer que desengaveto o texto agora, porque ele nunca foi para a gaveta. Só a gaveta da minha memória. A gavetas das coisas que pensamos deixar ali porque um dia podemos precisar delas. Enfim... espero comentários.

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  2. Acho que todo mundo que já teve algo que era tão precioso quanto uma aliança, pensada dentro de seu simblismo mais imediato: não ter inicio ou fim e, não ter emendas, parece perfeito não é? Contudo, o símbolo de representação dos relacionamentos é o menos adequado, afinal, existe algo mais imperfeito pelo sucessivos erros do que o mesmo? Quando vc descreve como peso de papel penso nisso. O símbolo fora de sua escala o referente que não é mais refencia de nada do que já foi. Não vou nem olhar o que escrevi, rs. Gostei do texto e da capacidade de se desarmar: das espadas e expectativas.

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