quinta-feira, 5 de maio de 2011

Quem pagará o enterro e as flores (ao narrador)?


No dia em que a paixão tomou-lhe de arrebato, Ítalo Brindisi não se levantou com o despertador. Ficou na cama, a barba roçando o travesseiro, o sol invadindo as frestas da persiana. Ítalo suava e retorcia-se, de cueca, sobre o lençol. O ventilador dava ritmo àquela voz que lhe ordenava: levanta, homem, vai fazer algo preste dessa tua vidinha domingueira. Ítalo lavou o rosto, olhou-se no espelho e espremeu uma espinha. Foi à cozinha, pôs água na chaleira, acendeu o fogo. Decidiu telefonar para casa: como é que vão as coisas por aí, mãe? Aqui, tudo ótimo, como sempre. A primavera já está chegando, e tem umas flores roxas muito lindas aqui na minha rua. A água chiando. Ah, Ítalo, meu filho, tu não tomas jeito mesmo. Um sonhador, um ingênuo... Igualito ao velho Brindisi, tuo nonno, que te pegava no colo e contava umas histórias em que só tu acreditavas... A voz da mãe falava pra dentro, aquela censura carinhosa de quem quer bem. Quase não se ouvia a mãe pela casa. Diferente da Amanda. Amanda ainda se misturava à poeira atrás dos móveis, e ressoava baixinho e insistentemente, fazendo Ítalo espirrar. Tu és um fracassado, Ítalo Brindisi, um joão-ninguém. Tu e as tuas idéias malucas, tua faculdade sem futuro, tua poesia sem métrica, teu bolso sem dinheiro. Amanda ainda dói. A chaleira quente queima os dedos. O barulho da água enchendo a térmica sempre aperta o coração, que sente saudade não sei do quê. Da cachoeira, talvez. Da água da chuva caindo da calha. Do nonno regando as flores... Piccolo Ítalo! Guarda com´ è bello! A voz do nonno ainda tem aquelas dissonâncias que surgem do nada, detrás dos livros, e ditam versos para as linhas em branco do caderninho verde de Ítalo Brindisi. Amargo. Cuspiu o primeiro mate. Preciso ir ao súper comprar mais erva. A barriga ronca. Preciso mesmo é sair, comer alguma coisa, largar de ser preguiçoso. Ajeitou o chimarrão, conferiu se a carteira estava no bolso, chaveou a porta.

Precisava estudar para aquela prova de Lógica. E lógica era o que Ítalo menos encontrava nessa bagunça que estava sua vida. Num ano, as mordomias e a comidinha de mamãe; noutro, comprar papel higiênico, separar as roupas por cores para lavar, condomínio atrasado não se paga no caixa eletrônico, e não é que tomate estraga até na geladeira!  Mas Porto Alegre tem suas vantagens. Tem sim. Tem o que fazer no domingo de manhã, embora eu fique sempre dormindo. Tem jacarandás que enfeitam a rua e fazem a gente resvalar às vezes. Tem feira do livro com todos os títulos, mesmo que eu não tenha um tostão para comprar. Tem luzes que piscam na minha janela e me distraem nas noites de insônia. Tem a primeira namorada com direito a dormir junto sem o pai reclamar. Tem Amanda, mas isso não conta. E tem a vizinha que estuda Letras e de quem eu ainda não sei o nome. Noutro dia, ela me deu “oi”. Que olhos ela tem! Olhos que ditam versos: “Eu me encontrei lá no fundo / dos teus olhos castanhos / onde velam meus sonhos / meu medo do mundo”. Ah, Ítalo Brindisi, tu és mesmo um estúpido, um palhaço, um caipira. Uma moça te dá “oi” no elevador e já te metes a fazer poemas para ela! Nem a conheces! Não sabes o nome sequer. Mas Ítalo mastigou os versos e gostou. Rabiscou no caderninho verde e foi cuidar das necessidades do corpo. Devoraria um boi pela perna. 

Sentou numa mesa ao fundo: um ala minuta e um chopp! Estava feliz sem saber ao certo a razão: Amanda não atendia mais ao telefone, não sabia as respostas da prova de sexta, dinheiro ia entrar só no dia dez e não ia sobrar quase nada. Mesmo assim, brindou consigo mesmo. Chopinho gelado. Que me chamem de louco. Sou como Ricardo Reis a brindar com Fernando Pessoa. Mas não só isso. Às vezes, troco idéias com Lorca, conversamos sobre poesia. Outro dia, creiam ou não, tomei um café com Neruda. Estou sempre bem acompanhado, sim senhor. Poderíamos viver só nós: eu e meu caderninho verde. Eu e meus pactos fugidios com a felicidade. Eu e minhas amantes imaginárias. Eu e Daniela. Larissa. Sofia. Paola. Marcela. Marissol. Carina. Fabiana... Fa-bi-a-na... Ah, Fabiana de Carlos Paez Vilaró. Fabiana transmutada de linhas e cores tão imbricadas. Fabiana polifônica. Fabi verde, rosa e azul. Em prosa e verso. Os olhos desdobrados. Claro e escuro. Toda a paleta de cores e a escala musical. Fa-bi-aaaaaa-na... Um calafrio subiu a espinha de Ítalo. Bendito sejas, Vilaró! Tu e Fabiana. Tu e tua compreensão do universo. Eu e a fragmentação do meu sendo-agora na exegese de uns olhos negros. Eu tenho um poema! Eu e Fabiana somos-no-mundo: eis a hermenêutica do amor-aqui e uns versos que nunca escrevi.

Ítalo Brindisi, mago das palavras, tu és um gênio! Puxou o caderninho verde. Passeou com a caneta no ar. Eu e o meu sendo-agora... Fabiana de linhas e cores... A hermenêutica do amor-em-si... Que merda! Escapou a idéia. Entristeceu e voltou a pensar em Amanda. Como era fácil escrever versos quando o fazia por ela. Bom, fácil até que era, mas Ítalo não gostava. Lorca diria que esses escritos eram prosaicos. Drummond teria pena de lhe falar a verdade. Neruda negou-se terminantemente a ler qualquer porcaria que Ítalo escrevesse para Amanda. Sabes qual é a diferença entre literatura e dor-de-cotovelo, Ítalo? Então não mostres mais nada! A caneta pousou indecisa sobre o caderninho verde. “Puedo escribir los versos más tristes esta noche. / Yo la quise, y a veces ella también me quiso...” Mas isso não era dele. Quisera fosse! Quisera, enfim, ser Neruda para afirmar tão categoricamente: “Aunque éste sea el último dolor que ella me causa, / y estos sean los últimos versos que yo le escribo”.

No restaurante, um ajunta-gentes. Quadros e cores vivas. Uma televisão que quase não se escuta, mas se vê.  Amarelo ocre azul cobalto. Alto, bastante alto. Gente passando o tempo todo. Seios pontiagudos. Ares de princesa maia. A enciclopédia das coisas que nunca existiram. Meu amor por Amanda. Uma espiral sobre a testa. Uns versos no caderninho verde. Cavalo e touro. Letras uniformes e disformes. Vinho, restaurante, cabaré, bar. Técnica mista. Eu me encontrei lá no fundo dos teus olhos castanhos... Ah, Chiara, esse teu gosto de spaghetti al pesto... Não, Ítalo. Não é Chiara. Pensas é naquela menina que te deu “oi”, semana passada, uma gramática de francês contra o peito. Ela tinha uns olhos de madrugada sem lua, de território sem fronteiras, a medida exata de todas as profundezas, o meu cenote, meu inframundo...

Oi, vizinho.
...
Sabia que ia te encontrar aqui.

Puxa, que coincidência! Tu ainda acreditas em coincidências, Ítalo? Teu nome...? É Bruna. Mas é claro! Com esses teus olhos negros de eclipse, teu cabelo de ébano, tua tez mourisca... Só podias te chamar Bruna! É mais bonito que Fabiana? Combina mais contigo. Riem. Eu me encontrei lá no fundo dos teus olhos castanhos. Ela ri um sorriso de meia-lua. Nem me viste, quando entrei. Estava ocupado, fazendo-te uma poesia. Quero ver. “Para mi corazón basta tu pecho / para tu libertad bastan mis alas / Desde mi boca llegará hasta el cielo / lo que estaba dormido sobre tu alma…” Bobo, isso é Neruda! E o que importa? Olham-se, medem-se, acercam-se. Literatura não poderia ser qualquer beijo num bar com chope quase quente e batatas fritas amolecidas. Vem! Eu te mostro o que é literatura! E o que é? Frisson, pasión, Chandon... E o que mais? Champs Elysées e Petit Palais do teu lado. Está bom. Amemo-nos.

No dia em que a paixão tomou-lhe de arrebato, Ítalo Brindisi não chorou antes de dormir. Ficou na cama, a barba roçando meu peito, a lua invadindo as frestas da persiana. Ítalo sussurrava e revolvia-se, de cueca, sobre o lençol. Os cachos dos meus cabelos davam ritmo aos versos que ele inventava na hora sem anotar no caderninho verde. Loucura? Volúpia, eu diria. Ouvi vozes durante o amor. E alguém que se parecia a Neruda assoviou a madrugada sob nossa janela. 
 

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